terça-feira, 6 de abril de 2010

Reportagem flagra farra do boi em Governador Celso Ramos, SC

Maus-tratos aos animais e uma cidade sem lei. A farra do boi acontece no município de Governador Celso Ramos, na Grande Florianópolis. Nos dias que antecederam a Páscoa, 2 e 3 de abril, a reportagem do Diário Catarinense acompanhou o acontecimento que para a cidade nos principais bairros: Ganchos, Palmas e Fazenda da Armação.

As ruas estreitas à beira-mar são tomadas pela multidão. Cada grupo traz o seu carro, coloca o volume do som no máximo com vários estilos musicais. As casas ficam lotadas e as pessoas vão às ruas. É uma espécie de Carnaval fora de época. Junto com a música a tortura pode começar.

Foto: Renan Koerich

Com o passar das horas, o carro com reboque traz o animal até o meio da multidão. Motos carregadas com três ou até quatro pessoas e veículos lotados seguem buzinando avisando que a farra vai começar. Ansiosos, os curiosos cercam o veículo e então o animal é solto ou na rua, na praça ou nos mangueirões.

Forma-se uma roda, onde os sádicos usam a camisa como uma capa e atiçam o boi, que, furioso e assustado, corre em direção aos farristas sem se importar com o que tem pela frente. Assobios, berros e tapas são sentidos pelo animal, que cansa.

Dependendo do bairro onde a prática acontece, ele foge para o mar ou para o mato. Senão, é novamente capturado pelos responsáveis e colocado dentro do caminhão para “repousar” e ser preparado para mais uma rodada.

Durante a noite foram vistos cerca de cinco ou seis bois soltos pelas ruas e nenhum policial para presenciar a farra, que, por sinal, acontecia em frente à prefeitura municipal.

Nas casas de estilo açoriano, os moradores, em sua maioria pescadores, passam a tradição adiante. Pais e mães sentam em suas cadeiras de praia em frente à casa com os filhos, netos e sobrinhos. Comem e bebem, divertindo-se com a tristeza. Quando a farra começa, os pequenos e os adultos entram no clima e atiçam o animal.

Muitas vezes, o acuado e assustado boi amassa os carros estacionados e reluta diante das provocações, comportamento depois castigado com amarras em seus chifres, sendo obrigado a seguir a festa a contragosto.

A maioria dos moradores da região aprova e aceita a farra do boi. Mas há uma minoria que não se sente à vontade com as invasões domiciliares durante a Quaresma – durante a fuga dos animais, os farristas entram nas propriedades particulares para se protegerem ou para torturar os bois.

No domingo à tarde, uma residência da Fazenda da Armação foi invadida. O dono da propriedade, que não quis se identificar, passou o feriado em um hotel de Florianópolis exatamente para não ter problemas no período. Mas não teve jeito: durante o almoço em família recebeu a notícia: em seu terreno havia no mínimo três bois, além da multidão de farristas.

“Na hora o caseiro ficou sem saber o que fazer. Não sabia se cuidava do cachorro que tinha sido envenenado ou se espantava os farristas que estavam tentando invadir a parte interna da casa. Chamamos a polícia e só uma hora depois eles apareceram. Conferiram se houve furto e a presença dos bois no terreno. Depois disso, foram embora, sem fazer nada”, relatou o dono da propriedade.

No início desta semana, o dono da casa disse que vai procurar uma imobiliária para colocar o imóvel à venda. Segundo ele, o local não condiz com a imagem passada aos turistas, de tranquilidade. “Enquanto nas ruas pessoas embebedadas gritam irracionalmente para que maltratem um animal e destruam as propriedades alheias, outras, nas igrejas, gritam evocando Jesus. É uma fé irracional”, opina o morador.

Cidade sem lei

Durante a farra do boi, a cidade se transforma em um local onde as leis são ignoradas. Nos bairros onde tudo acontece, nem a polícia e nem as ambulâncias de atendimento médico são vistas. É cada um por si. Motoristas embriagados com as latas de cerveja nas mãos e motocicletas com mais de três pessoas circulam tranquilamente em meio ao povo.

Rua do sufoco

Em Palmas, um dos pontos preferidos pelos farristas é a rua Manoel Honório Marques, conhecida como a “rua do sufoco”. O local leva este nome pois não tem saída, é estreita e comprida e no final há um mangueirão, uma espécie de ringue. Lá, os bois são cercados pelos farristas e obrigados a participar do jogo. Os curiosos ficam do lado de fora pendurados na cerca ou nos galhos das árvores, assistindo à “brincadeira”, como em um jogo de futebol.

Pena pode chegar a três anos de prisão

O promotor de Justiça Aurélio Giacomelli vai iniciar a investigação pelos depoimentos de todos policiais civis e militares que estavam de plantão em Governador Celso Ramos durante a Páscoa. Eles deverão esclarecer por que não teriam chamado reforço.

Também deverão indicar os nomes de todos os farristas. Depois, a promotoria vai investigar os farristas, apurando a prática do crime previsto no artigo 32 da Lei número 9.605/98: praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais. A pena é de três meses a um ano e multa.

Com base na legislação ambiental

O ACÓRDÃO 153.531-8 DE 1997 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Considera a farra do boi uma crueldade com os animais, ofensiva ao inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal, e proíbe sua realização, ainda que sem violência e dentro dos mangueirões, sob pena de responsabilização de seus agentes.

ARTIGO 225 DO CAPÍTULO VI DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Parágrafo 1º — Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: … proteger a fauna e a flora vedadas, na forma da lei, as práticas que possam colocar em risco sua função ecológica, provoquem a extinção das espécies ou que acabem por submeter os animais à crueldade.

LEI DOS CRIMES AMBIENTAIS (LEI 9.605 DE 12 DE FEVEREIRO DE 1998)

É crime contra a fauna praticar atos de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos. Pena: detenção de três meses a um ano e multa. A pena é aumentada de 1/6 a 1/3 se ocorrer a morte do animal.

Fonte: Diário Catarinense

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